Nota
Pastoral do Conselho Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa
«Eutanásia:
o que está em causa?
Contributos
para um diálogo sereno e humanizador»
1. As questões ligadas à legalização da
eutanásia e do suicídio assistido estão em discussão na Assembleia da República
e na sociedade. Como contributo para esse debate, que desejamos seja em diálogo
sereno e humanizador, surge esta Nota Pastoral do Conselho Permanente da
Conferência Episcopal Portuguesa sobre o que verdadeiramente está em causa1
.
2. Por eutanásia, deve
entender-se «uma ação ou omissão que, por sua natureza e nas intenções, provoca
a morte com o objetivo de eliminar o sofrimento»2 . A ela se pode
equiparar o suicídio assistido, isto é, o ato pelo qual não se causa diretamente
a morte de outrem, mas se presta auxílio para que essa pessoa ponha termo à sua
própria vida. Distinta da eutanásia é a decisão de renunciar à chamada
obstinação terapêutica3 , ou seja, «a certas intervenções médicas já
inadequadas à situação real do doente, porque não proporcionadas aos resultados
que se poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para ele e para a
sua família»4 . «A renúncia a meios extraordinários ou
desproporcionados não equivale ao suicídio ou à eutanásia; exprime, antes, a
aceitação da condição humana perante a morte»5 . É, pois, bem
diferente matar e aceitar a morte. Quer a eutanásia, quer a obstinação
terapêutica, constituem uma ingerência humana antinatural nesse momento-limite
que é a morte: a primeira antecipa esse momento, a segunda prolonga-o de forma
artificialmente inútil e penosa.
3. De forma sintética, podemos
dizer que subjacente à legalização da eutanásia e do suicídio assistido está a
pretensão de redefinir tomadas de consciência éticas e jurídicas ancestrais
relativas ao respeito e à sacralidade da vida humana. Pretende-se que o
mandamento de que nunca é lícito matar uma pessoa humana inocente (“Não
matarás”) seja substituído por um outro, que só torna ilícito o ato de matar
quando o visado quer viver. Consequentemente, intenta-se que a norma segundo a
qual a vida humana é sempre merecedora de proteção, porque um bem em si mesma e
porque dotada de dignidade em qualquer circunstância, seja substituída por um
outro critério, segundo o qual a dignidade e valor da vida humana podem variar
e podem perder-se. Ora, na nossa conceção, isto é inaceitável.
4. Para os crentes, a vida não
é um objeto de que se possa dispor arbitrariamente, é um dom de Deus e uma
missão a cumprir. E é no mistério da morte e ressurreição de Jesus que os
cristãos encontram o sentido do sofrimento. Mas quando se discute a legislação
de um Estado laico importa encontrar na razão, na lei natural e na tradição de
uma sabedoria acumulada um fundamento para as opções a tomar. O valor
intrínseco da vida humana em todas as suas fases e em todas as situações está
profundamente enraizado na nossa cultura e tem, inegavelmente, a marca
judaico-cristã. Mas não é difícil encontrar na razão universal uma sólida base
para esse princípio. A Constituição Portuguesa reconhece-o ao afirmar categoricamente
que «a vida humana é inviolável» (artigo 24º, nº 1).
5. A vida humana é o
pressuposto de todos os direitos e de todos os bens terrenos. É também o
pressuposto da autonomia e da dignidade. Por isso, não pode justificar-se a
morte de uma pessoa com o consentimento desta. O homicídio não deixa de ser
homicídio por ser consentido pela vítima. A inviolabilidade da vida humana não
cessa com o consentimento do seu titular. O direito à vida é indisponível, como
o são outros direitos humanos fundamentais, expressão do valor objetivo da
dignidade da pessoa humana. Também não podem justificarse, mesmo com o
consentimento da vítima, a escravatura, o trabalho em condições desumanas ou um
atentado à saúde, por exemplo.
6. Por outro lado, nunca é absolutamente
seguro que se respeita a vontade autêntica de uma pessoa que pede a eutanásia.
Nunca pode haver a garantia absoluta de que o pedido de eutanásia é
verdadeiramente livre, inequívoco e irreversível. Muitas vezes, traduz um
estado de espírito momentâneo, que pode ser superado, ou é fruto de estados
depressivos passíveis de tratamento, ou será expressão de uma vontade de viver
de outro modo (sem o sofrimento, a solidão ou a falta de amor experimentados),
ou um grito de desespero de quem se sente abandonado e quer chamar a atenção
dos outros. Mas não será a manifestação de uma autêntica vontade de morrer. É,
pois, uma linguagem alternativa de quem pede socorro e proximidade afetiva. A
dúvida há de subsistir sempre, sendo que a decisão de suprimir uma vida é a
mais absolutamente irreversível de qualquer das decisões.
7. Em nome da autonomia, os que defendem a
legalização da eutanásia e do suicídio assistido não chegam, por ora, ao ponto
de pretender a legalização do homicídio a pedido e do auxílio ao suicídio em
quaisquer circunstâncias. Pretendem apenas reconhecer a licitude da supressão
da vida, quando consentida, em situações de sofrimento intolerável ou em fases
terminais. Desta forma, atentam contra o princípio de que a vida humana tem
sempre a mesma dignidade, em todas as suas fases e independentemente das
condições externas que a rodeiam. A dignidade da vida humana deixa de ser uma
qualidade intrínseca, passa a variar em grau e a depender de alguma dessas
condições externas. Haveria, pois, situações em que a vida já não merece
proteção (a proteção que merece na generalidade das situações), por perder
dignidade.
8. Invocam os partidários da
legalização da eutanásia e do suicídio assistido que, com essa legalização, se
respeita, apenas, a vontade e as conceções sobre o sentido da vida e da morte,
de quem solicita tais pedidos, sem tomar partido. Mas não é assim. O Estado e a
ordem jurídica, ao autorizarem tal prática, estão a tomar partido, estão a
confirmar que a vida permeada pelo sofrimento, ou em situações de total dependência
dos outros, deixa de ter sentido e perde dignidade, pois só nessas situações
seria lícito suprimi-la. 3 Quando um doente pede para morrer porque acha que a
sua vida não tem sentido ou perdeu dignidade, ou porque lhe parece que é um
peso para os outros, a resposta que os serviços de saúde, a sociedade e o
Estado devem dar a esse pedido não é: «Sim, a tua vida não tem sentido, a tua
vida perdeu dignidade, és um peso para os outros». Mas a resposta deve ser
outra: «Não, a tua vida não perdeu sentido, não perdeu dignidade, tem valor até
ao fim, tu não és peso para os outros, continuas a ter valor incomensurável
para todos nós». Esta é a resposta de quem coloca todas as suas energias ao
serviço dos doentes mais vulneráveis e sofredores e, por isso, mais carecidos
de amor e cuidado; a primeira é a atitude simplista e anti-humana de quem não
pretende implicar-se na questão do sentido da verdadeira «qualidade de vida» do
próximo e embarca na solução fácil da eutanásia ou do suicídio assistido.
9. Não se elimina o sofrimento
com a morte: com a morte elimina-se a vida da pessoa que sofre. O sofrimento
pode ser eliminado ou debelado com os cuidados paliativos, não com a morte. E
hoje, as técnicas analgésicas conseguem preservar de um sofrimento físico intolerável.
Desta forma, pode afirmar-se que a eutanásia é uma forma fácil e ilusória de
encarar o sofrimento, o qual só se enfrenta verdadeiramente através da medicina
paliativa e do amor concreto para com quem sofre. Como afirma Bento XVI, «a
grandeza da humanidade determina-se essencialmente na relação com o sofrimento
e com quem sofre»6. Para além do círculo afetivo dos seus familiares
e amigos, a dignidade de quem sofre reclama o cuidado médico proporcionado,
mesmo que os atos terapêuticos e os analgésicos possam, pelo efeito secundário
inerente a muitos deles, contribuir para algum encurtamento da vida. Neste
caso, não se trata de eutanásia, pois o objetivo não é dar a morte, mas
preservar a dignidade humana e a «santidade de vida», minimizando o sofrimento
e criando as condições para a «qualidade de vida» possível.
10. A mensagem que, através da
legalização da eutanásia e do suicídio assistido, assim se veicula tem graves
implicações sociais, que vão para além de cada situação individual. Esta
mensagem não pode deixar de ter efeitos no modo como toda a sociedade passará a
encarar a doença e o sofrimento. Há o sério risco de que a morte passe a ser
encarada como resposta a estas situações, já que a solução não passaria por um
esforço solidário de combate à doença e ao sofrimento, mas pela supressão da
vida da pessoa doente e sofredora, pretensamente diminuída na sua dignidade. E
é mais fácil e mais barato. Mas não é humano! Neste novo contexto cultural, o
amor e a solidariedade para com os doentes deixarão de ser tão encorajados,
como já têm alertado associações de pessoas que sofrem das doenças em questão e
que se sentem, obviamente, ofendidas quando veem que a morte é apresentada como
“solução” para os seus problemas. E também é natural que haja doentes, de modo
particular os mais pobres e débeis, que se sintam socialmente pressionados a
requerer a eutanásia, porque se sentem “a mais” ou “um peso”. É este, sem
dúvida, um perigo agravado num contexto de envelhecimento da população e de
restrições financeiras dos serviços de saúde que implícita ou explicitamente se
podem questionar: para quê gastar tantos recursos com doentes terminais quando
as suas vidas podem ser encurtadas?
11. Não podemos ignorar que,
entre nós, uma grande parte dos doentes, especialmente os mais pobres e
isolados, não tem acesso aos cuidados paliativos, que são a verdadeira resposta
ao seu sofrimento. A legalização da eutanásia e do suicídio assistido
contribuirá para atenuar a consciência social da importância e urgência de
alterar esta situação, porque poderá ser vista como uma alternativa mais fácil
e económica. 12. Com esta Nota Pastoral, apelamos à consciência dos nossos
legisladores. Mas também sabemos que uma grande percentagem dos nossos
concidadãos afirma aprovar a legalização da eutanásia e do suicídio assistido.
Estamos convictos de que muitos o fazem sem a consciência clara do que está
verdadeiramente em causa. Daí a importância de um vasto trabalho de
esclarecimento para o qual queremos dar o nosso contributo. No Ano Jubilar da
Misericórdia, recordamos que esta nos leva a ajudar a viver até ao fim. Não a
matar ou a ajudar a morrer.
Fátima, 8 de março de 2016
1
Sugerimos também a leitura da Nota Pastoral da Conferência Episcopal
Portuguesa, «Cuidar da Vida até à Morte». Contributo para a reflexão ética
sobre o morrer, publicada a 12 de novembro de 2009, in Documentos Pastorais,
vol. VII, Lisboa 2002, 123-131.
2
João Paulo II, Carta encíclica Evangelium Vitae (25 de março de 1995), n. 65.
3
Também designada por “encarniçamento médico”.
4
João Paulo II, Carta encíclica Evangelium Vitae (25 de março de 1995), n. 65. 5
Ibidem.
6.
Carta encíclica Spe Salvi (30 de novembro de 2007), n. 38. 4
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Taiana de Maria